sexta-feira, 8 de junho de 2012

INGRESSO PARA A MORTE

Numa bela manhã de inverno logo nas primeiras horas do dia chega um sujeito em um dos meus consultórios que  conseguiu mexer com os meus sentimentos. A princípio fiquei irritado com sua chatice, depois, durante nosso diálogo pude observar que eu estava diante de um homem problemático, mas convincente de que realmente queria mudar o seu modo de vida. Ele estava embriagado e, confesso que tenho aversão a álcool, porém, sendo eu o doutor me senti na obrigação de ajudá-lo.

- Qual é o teu nome?
- O que vai me ajudar se eu lhe disser que sou Pedro Paulo?
- A princípio posso lhe afirmar que nossa conversação ficará mais educada, direta e inteligente.
- Todo esse sermão, pra que?
- Meu amigo, isso não é um sermão. Só lhe perguntei qual é o seu nome.
- Eu já lhe disse meu nome. O senhor é surdo? Meu nome é Pedro Paulo.

Respirei fundo tendo a leve impressão de que iria me aborrecer com aquele sujeito.

- Qual é o teu problema, Pedro Paulo?
- O senhor só sabe perguntar?

Alterei a voz:

- Meu amigo, se não responder minhas perguntas será praticamente impossível eu lhe ajudar.
- Muito bem. Não precisa ser grosso. Meu problema é a maldita bebida.
- Se me diz que a bebida é maldita, então por que bebe da maldição?
- Porque sou dependente dela, doutor.
- Obrigado por admitir isso, Pedro Paulo. Já é um ótimo começo. Ser um dependente químico é ser mais um doente no mundo, porém, tal doença tem cura. Quer se livrar do álcool?

Ele baixa a cabeça e chora convulsivamente.

- É o que mais quero doutor. Por causa dela perdi minha esposa e também meus quatro filhos. Nada de bom fiz por eles. Eu queria mais era ficar nos barzinhos jogando conversa fora com meus amigos. Eu chegava a casa tropeçando em tudo, dando pontapés na cadela, violento e com sede de briga. Agredia moralmente e também, fisicamente a mãe dos meus filhos que sempre foi caprichosa no lar e eu não enxergava isso.

- Tudo isso por causa da bebida. Mas, você não era obrigado a beber. Se desviasse do bar, dos amigos que nunca foram seus amigos e fosse pra casa curtir a sua família (que é o melhor da vida) toda a sua história hoje seria diferente.

- Eu achava que minha felicidade estava lá no bar, doutor. Lá eu cantava com meus amigos, ria e também chorava muito.

- Tudo isso é ilusão, Pedro Paulo. A bebida transforma um homem num bicho; num verdadeiro fracassado. Embriagado o homem fala mole, fica com um semblante horrível, da risada sem graça; chora pela morte da cadela e, o pior: está comprando o seu ingresso para a morte.

- Meu Deus! É verdade.

- O sujeito que depende do álcool para ficar desinibido é o maior dos complexados. Tudo o que pensa, fala ou escreve é mentira e, mesmo que seja verdade. Não tem crédito; é mal visto e mal quisto pela sociedade e vive sempre solitário porque todas as suas amizades são artificiais, isto é: quando movidas pelo álcool.

- Concordo com o senhor, doutor.

- Movido pelo álcool ele não percebe, mas, se transforma numa criatura monstruosa, inconveniente, desagradável, desprezível e especificadamente fedorenta. Não perde a moral porque não tem moral. É um sujeito sem palavra, mentiroso, caloteiro e quase todos os adjetivos maléficos que possa existir. Os males que o álcool provoca são diversos, mas, creio que o pior deles é o mau-humor. O sujeito ressacado não tem interesse por nada. Fica tão relaxado como um ocioso; tudo o que falara no dia anterior (movido pelo álcool) foi tão artificial como é a sua vida dia após dia. Um dia vai ter que prestar contas com o seu Criador e, creio que nesse dia será muito tarde para reparar erros; para arrependimento. Na realidade, enquanto ele vivia na terra comprava o seu ingresso para a morte consciente, portanto foi um suicida.

- Meu Deus, doutor!

- Que maravilha é acordarmos disposto, ouvindo o cantar dos pássaros, com aquela vontade imensa de viver mais um dia! Sem aquela maldita ressaca, indisposição total e principalmente aquela depressão que bebemos no dia anterior.

- Mas, por que não consigo me libertar da bebida, doutor?

- Porque você não quer. È muito simples se abster daquilo que nos danifica, destrói. Observe os bezerrinhos, por exemplo: eles tomam leite e, com o tempo comem capim. Os bebês humanos crescem tomando leite e ao invés de capim comem salada, pelo menos comigo foi assim. Imagine um bebê bêbado. Não seria o apocalipse?

- Seria mesmo.
- Na realidade, o homem na regra geral tem tantos problemas porque quer. Beber não é nunca foi e nunca será a solução para qualquer tipo de problemas. É o maior de todos os problemas. Você fica irresponsável, mente, não diz coisa com coisa, faz escândalos, fica valente, mas, na realidade não passa de um covarde porque tal violência é movida pelo álcool, por uma droga que só vai trazer desgraça em sua vida. A primeira dose pode ser a última; o primeiro copo pode ser o último.

- To começando a ter horror à bebida alcoólica, doutor. A propósito, o senhor nunca bebeu?

- Bebo água, leite e sucos naturais. Isso não é bom?

- Mas, doutor, não consigo me imaginar sentado numa roda de amigos tomando água, leite ou sucos naturais.

- Pedro Paulo, o verdadeiro diálogo tem que ser são e não doente. Você pode não acreditar, mas, quando estamos sãos o próprio universo sorri pra gente e, conseqüentemente tudo na vida tende a dar certo. Esteja certo de que teremos na trajetória de nossa vida tão passageira, bons pensamentos, bons sonhos, boa saúde, bons e verdadeiros amigos e, principalmente uma verdadeira família.

Novamente Pedro Paulo baixa a cabeça.

- Mas, agora é tarde, doutor. Perdi minha família.

- Tua mulher e filhos morreram?

- Não. Minha ex-mulher encontrou um homem de verdade e se juntou com ele. Meus filhos se revoltaram comigo porque os abandonei no passado.

- Com o tempo eles vão aprender que quem de fato abandonou quem foi você a você mesmo. Todos os seus filhos estão revoltados contigo?

-Pelo menos dois deles nem querem me ver.

- Disse que tem quatro filhos.

- Do meu primeiro casamento sim, mas, tenho outros.

- Não importa a quantidade de filhos que você tenha Pedro Paulo. Se eles estão aqui é porque Giré permitiu. Se pelo menos conseguir reconquistar o amor de um deles, tenha certeza de que, o amor dos outros virá com o tempo. Não se esqueça: quando estamos sãos o universo sorri pra gente.

- Decididamente não quero mais beber, doutor. Se ainda der tempo vou tentar reconquistar o amor dos meus filhos que são como pérolas preciosas pra mim. Sei que vai ser difícil, mas vou tentar.

- Difícil?! Difícil é Gire pecar e Girún (o Diabo) se converter, amigo. Vai ser tão fácil quanto parar de beber. A propósito, ainda vai querer beber da maldição?

- Não doutor. Fiquei pensando nesse tal ingresso pra morte que o senhor me falou e basta. Eu quero viver. Muitos de meus amigos se foram por causa do álcool. Alguns com cirrose, hepatite, outros por infarto, diabetes e até suicídio.

- Então, meu caro não queira ser mais um na lista deles. Um dia, todos nós que aqui estamos também teremos que partir, mas, que nesse dia estejamos sãos e sóbrios como aqueles bezerrinhos e bebezinhos porque o universo, sem dúvida tem preparado um excelente lugar para a gente.

Pedro Paulo fixa seus olhos na minha garra térmica.

- É café que tem ali naquela garrafa, doutor?

- É uísque, querido. Alguns dos meus pacientes tomam e, quer uma dose?

- De uísque?! Não, nem pensar. Desse mal posso lhe garantir que estou liberto e, graças ao senhor.

- De graças a Gire, meu querido e vá à paz dele. Não caia na tentação como nossos pais lá do passado: Adão e Eva. Sem dúvida fizeram da fruta proibida um licorzinho e olha só no que deu.

- Muito obrigado mesmo, doutor.

- Não tem de que me agradecer, amado. Que Gire dos giros te acompanhe e, daqui pra frente gaste o seu dinheiro comprando o ingresso para a vida: tome leite como o bezerro. Se tu e teus filhos tendeis celulares encha o teu de créditos e, mande torpedos pra eles. Creio que até Girún (o Diabo) gosta de receber mensagens. Com teus filhos não vai ser diferente.

Dei um aperto de mão e um abraço bem forte em Pedro Paulo que saiu satisfeito do meu consultório. Não de mentir, mas, jamais iria oferecer meu café (bala intestinal) a ele que foi tão agradável, pois meu café é destinado às pessoas desagradáveis.
Alguns meses depois... Eu atravessava uma avenida bem movimentada da capital paulista e quem eu vejo num boteco? Ele mesmo: Pedro Paulo. Conhecem aqueles copinhos sem-vergonhas que alguns chamam de martelinhos? Pois é, ele tomava um martelinho branco e, quando me viu ficou tão surpreso que, quase aquele copinho caiu...

- Pedro Paulo! Tomando uma batidinha de côco?!
A garçonete é quem respondeu por ele.

- Não, doutor! Ele ta tomando leite e já é o quarto.

Fiquei tão emocionado que resolvi tomar um também, mas, no meu copo que tirei da minha bolsa. Não confio nessas lavações de botecos, sabem?
Postado por Doutor Boa às 16h17min http://img2.blogblog.com/img/icon18_edit_allbkg.gif

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