segunda-feira, 7 de abril de 2014

CHICO ANÚ



Chico Anú era um velho sertanejo, trabalhador de primeira. Apesar de ser analfabeto, era muito inteligente. Ninguém era capaz de enrolar o velho não. Trabalhava por conta própria, capinando matagais em terrenos baldios, cortando gramas de jardins, enfim, para o velho não tinha tempo ruim, não. Expulsou de sua casa sua velha e seus oito filhos por não pegarem na enxada como ele; queriam viver assim, numa vida mansa, boa, tranqüila e serena, compreende? O velho Chico Anú meteu o pé nas bundas deles logo pela manhã, ao cantar dos pássaros.
O velho Moisés era um rico fazendeiro, miserável, gostava de explorar os outros, não pagava ninguém, principalmente, Chico Anú, que de vez em quando, prestava serviços a ele.




Chico Anú morava sozinho, isto é, com sua criação de galinhas e Carniça, sua cadelinha sarnenta que latia até pro vento.

O velho Moisés tinha um trabalho para Chico que, andou cerca de 50 km até chegar à mansão do miserável. O velho Chico tava amarela feita a gema do ovo de tanta fome. “Que bom! Cheguei bem na hora da bóia”. Pensou ele. Bóia?! Que bóia? O velho Moisés veio lhe atender no portão, e o miserável palitava seus dentes.


- Chegou cedo, velho! Tem café? Quer café?


Chico Anú queria mesmo era um prato de bóia, mas, pra não fazer desfeita, aceitou o café. Vixi, Nice! Que imundície de café ruim era aquele? Frio, fraco, fedido e, no fundo da caneca, cheio de formigas. Por pouco aquele café não voltou pela goela do velho Chico. E o miserável do velho Moisés ainda pergunta para Chico:


- Quer mais café? Tem mais café. Vai querer mais café?


O velho Chico responde sério.


- Não. Muito obrigado.


O velho Moisés bate uma de suas mãos noutra e diz.


- Bom, velho, o café tava bom, a conversa também, mas, vamos trabalhar, não é? Só nenê é que não trabalha. Tem um terreninho aqui pertinho, dá pra não dar muito uns 8 km; quero que tu me deixes aquele cabeludo careca, velho.


Chico Anú não entende.


- Que cabeludo?


O velho Moisés dá um arroto dos altos, solta um peido e diz.


- O terreninho, velho. Virou uma floresta lá dentro dele, entendestes?


Chico Anú sorri.


- Sim. Vamos lá ver então o tal terreninho.


O velho Moisés solta uma gargalhada sem graça e diz.


- He! He! Que Mané vamos, velho? Só quero ver aquela imundície quando estiver careca. Mesmo que eu quisesse levá-lo até lá, não da. Os quatro pneus do meu F1000 estão furados. Mas, te ensino como é que tu chega lá. Vai toda a vida reta. Toda a vida entendeu? Na tua esquerda, do lado de lá, tem uma plaquinha que diz assim: “Propriedade de Moisés Brandão”.


O velho Chico Anú fica preocupado.


- Mas eu não sei ler. Tu sabe disso.


O velho Moisés solta mais um arroto e diz.


- Não será necessário ler nada, velho! A plaquinha é azul. As cores tu conhece, não é?


Chico Anú diz.


- Sim.


- E outra: passa muita gente de carro, caminhão e perua doida pra dar uma carona pra alguém. Tu vai ver velho. Vai andandinho e vai nessa. Já foi?

E Chico Anú segue por aquela estrada deserta. Nem carona, nem caroninha. Aquele lugar era esquecido. O sol rachava de tão forte, capaz de avermelhar até uma bunda coberta. Coitado do Chico!


Vixi, nossa! Sai da fossa! Chico Anú pensou em desistir quando viu o tamanho daquele terreno cabeludo. Era grande demais e os matos faziam até curvas. Como Chico Anú era um velho porreta, descendente de avô índio, encarou o serviço. Seu chapelão de palha tava ao ponto de incendiar em sua cabeça. Que sede, Pedro Simão da rede! Naquele lugar não havia casas, não! E a sede quando vem não há nada que ela mais deseje do que a água, não é verdade, sô?


Chico Anú capinou o matagal das duas da tarde até as sete da noite e ainda tinha sol. Com sua enxada nas costas voltou por aquele estradão a fora na esperança de pegar um vale com o velho Moisés. Chegou lá com calos aflitos em seus pés cansados e sofridos. Fome?! Ele tava branco feito um miolo de côco. O miserável do velho Moisés vem lhe atender palitando os dentes.


- Velho Chico Anú, se tu tivesse chegado cinco minutos antes tu ia comer um peru, Jesus! Os últimos pedacinhos, minha esposa deus pros cachorrinhos. Mas, tem café. Quer café?


Chico Anú mal podia falar de tão cansado e faminto.


- Não. Só um pouco d’água, ta bom.

E aquele miserável grita, chamando sua mulher.


- Maria! Ô Maria! Maria!


E a velha Maria vem correndo pensando que algo de ruim estava acontecendo.


- O que foi? O que foi?


E o descarado, nojento e sem educação do velho Moisés solta um peido e diz.


- Traz uma aguinha pro velho Chico.


A velha Maria fica com pena do velho Chico.


- Coitado! Ta tão amarelinho! Aceita um cafezinho?


Chico Anú estava ao ponto de mandar aquele casal pro inferno, mas, foi educado.


- Não. Somente um pouco d’água.


E a velha Maria insiste.


- Mas, depois da água, aceita um cafezinho?


‘ROINNC’, a barriga de Chico ronca.


- Não, Dona Maria. To com muita fome. O sol já te se pondo e eu preciso ir embora porque minha casa fica muito longe daqui. Amanhã, vou trazer pro serviço uma marmitinha e...


Opa! Parece que o velho Moisés tinha um pouco de generosidade, gente.


- De jeito nenhum! Amanhã, tu vai almoçar mais eu e Maria e, não se fala mais nisso. Chegue aqui ao meio dia em ponto. Não chegue atrasado não por causa dos cachorrinhos, entendestes?


E Chico Anú foi se embora. Coitado do velho, gente! Teria que andar mais 50 km até chegar a sua casa e, o pior, não era só isso. Carniça, sua cadelinha devia estar com uma fome daquelas. Depois de quase duas horas de caminhada, finalmente, Chico chega a sua casinha. A cadelinha Carniça latia até fino de tanta fraqueza. Estava com uma fome da peste. Chico ficou comovido de ver.



- Ô minha filha, Carniça! Eu faço ideia da fome que tu ta sentindo porque eu também to. Papai vai fazer uma bóia pra gente, certinho?


E Chico Anú deixa o galo viúvo de uma das galinhas e seus pintinhos órfãos. Que natureza triste, sô! A coitadinha da galinha tava dormindo e acordou para ser estrangulada. O resultado deu num panelão de canja de galinha com batatas que matou a fome do velho e de sua cadela sarnenta.


No dia seguinte, logo pela manhã, o galinheiro estava de luto. A galinha Cocorocó era querida pelo galo e por todos os pintos. Fazer o que, né? O velho Chico Anú encheu o pote de Carniça de canja de galinha e disse:


- Essa canja tem que durar até a noite, entendestes?


O velho pega sua enxada e segue a estrada, calculando chegar até o meio dia na casa do velho Moisés. Coincidências existem, creiam. Chico Anú chegou lá na mansão do velho ao meio dia em ponto e já estava com muita fome. Tocou o interfone e ficou aguardando.  Deu meio dia e meia e nada. Vixi! Cadê Moisés, amados do Egito? Deu uma hora da tarde e nada. Chico Anú amaldiçoou tanto esse miserável do velho Moisés, gente! Com certeza, não tinha ninguém naquela mansão. Chico Anú teria que andar mais 8 km e o pior que não trouxera a bóia. E ele segue resmungando, com sua enxada nas costas. O sol gozando o seu calor e mais um dia de trabalho seria cumprido e comprido, com certeza.


Na boca do crepúsculo, Chico Anú chega à mansão do velho Moisés. Toca o interfone e, dessa vez, o miserável estava em casa. Veio atender Chico, palitando os dentes, como sempre.


- Velho Chico, tu não morre mais, visse? Eu mais minha velha tava falando de tu, agora.


Chico Anú parecia estar zangado.


- Pois é, Moisés, conforme o combinado, estive aqui hoje ao meio dia em ponto. Parece que tu não estava em casa.


- E não estava mesmo, velho! Um dos meus cachorrinhos ficou doente de tanto que comeu e tive que levá-lo ao veterinário, entendestes? Maria foi comigo. Mas, o importante é que o bichinho passa bem e, nossa! Ocê ta amarelo, velho! Quer café? Aceita um café?


Chico Anú foi direto.


- Não quero café, não. Amanhã, teu terreno estará careca. Que horas passo aqui pra receber?


O velho Moisés da uma de bobo.


- Receber? Sim, é claro. Tu vai receber só quando os bancos saírem da greve, amado velho! Mas, veja bem, dessa vez é pra valer: amanhã, quero que tu esteja aqui ao meio dia pra almoçar mais eu e Maria.


Chico Anú sorri.


- Pode esperar que eu estarei.


E Chico Anú foi se embora rindo feito uma besta. De certo era o sol, o cansaço e a fome que deixaram ele assim meio bobo. Chegou a sua casinha e repetiu a mesma rotina da noite anterior. Matou desta vez, um franguinho e fez dele a moda a passarinho; fez um panelão de feijão e arroz misturando tudo junto e acrescentou farinha. A cadela Carniça comeu tanto que vomitou e comeu até seu vômito. Vixi! A comida estava gorda dessa vez, hein?


Na manhã seguinte, silêncio total no galinheiro. Coitadinho do Crói, do franguinho boy! Ele era tão jovem! Tinha uma vida inteira pela frente, gente! Mais um pouco e ele seria um galo. Fazer o que, né?

 E lá vai o velho Chico Anú que, dessa vez, já foi preparado: levou consigo um marmitão completo para o serviço e mais um garrafão d’água. Nem passou na mansão do velho miserável Moisés. Caprichou no serviço e fez isso cantando, gente! Com a barriga cheia, realmente, se trabalha melhor, não é mesmo? Voltando pra casa, à noitinha, mesmo sabendo que não ia receber nada do velho Moisés, devido à greve bancária, passou lá só pra dizer pro velho miserável que o trabalho estava pronto. Tocou o interfone e lá vem o praga lhe atender, desta vez, sem palitos.

- Mas, tu é mesmo um velho tratante, descarado e sem palavras, hein? Eu mais minha Maria te esperamos aqui até as duas da tarde. Tu disse que vinha, não vinha? Por que tu não veio, “véio?”


E Chico Anú responde sorrindo.


- É que eu estava sem fome.


E o velho Moisés estava nervoso.


- Mas, aí tu me tirou e minha velha pra palhaço. Pra não fazer desfeita, janta com a gente?


Chico Anú responde sorrindo.


- É claro.


Que maravilha! Tinha bacalhau com batatinhas. Chico comeu tanto que ainda levou um panelão para sua casa. Só que, antes teve ouvir do velho Moisés.


- Velho Chico, eu lhe conheço há tantos anos e, por essa, eu não esperava. Tu ta usando drogas, “véio?”


Chico Anú pede licença, solta um peido reforçado e diz.


- Claro que não, velho Moisés.


E o velho Moisés pergunta.


- Por que diabos tu não para de rir? Ou será que tu ta ficando louco?


E Chico diz.


- Pois é, Moisés. Deve ser o trabalho que é muito duro. To indo nessa e se me permite, posso soltar mais um peido? Será o último de hoje.


E Chico Anú volta para sua casinha e, dessa vez, não assassinou nem mais uma galinha e nenhum franguinho. Tratou de Carniça, sua cadelinha, e foi dormir assoviando de tanta alegria. Será que estava ficando “gagá?”


Uma semana depois, fim da greve bancária, ele vai até a mansão do velho Moisés pra receber. Xii!! Foi aquela enrolação, sabe? Desculpas de caloteiros. Chico voltou lá várias vezes e não recebeu nada do velho Moisés que sempre dava uma desculpa diferente.


A velha Maria estava preocupada.


- Moisés, tu não ta achando estranho a paciência do velho Chico? To pra lhe dizer que ele deve ta armando uma pra gente.


- Deixe de ser besta, mulher! Aquele caipira mal sabe armar uma rede. Vou matar ele pelo cansaço, tu vai ver. Uma hora dessa ele desiste de vir aqui pra receber o que nunca vou lhe pagar.


E Maria, porca, tira um catarro do seu nariz, esfrega na parede e diz.


- Jó perde pra ele na paciência. O velho Chico ta muito tranqüilo, pro meu gosto.


Vixi! Chico Anú era inteligente demais, sô! Como pode? Um velho analfabeto daquele, descobriu que a mansão e todos os bens do velho Moisés estavam empenhoradas na Justiça. O velho Moisés devia até pro juiz Luiz, sô. E, peraí! O velho Chico Anú comprou toda a dívida do velho Moisés. Mas, como? Ele nem sequer jogava na loteria, Maria!


Numa bela manhã, Chico Anú chega à frente da mansão que era do velho Moisés, num caminhão da justiça para fazer o despejo. O velho Moisés e a velha Maria pulavam, babavam e peidavam querendo unicamente saber como é que aquele velho pobre arrumou tanto dinheiro para comprar todos os seus bens. Chico Anú, para tranqüilizá-los diz que revelaria o tal segredo após um ano. Que suspense, gente!


Após um ano, o velho Moisés, mas sua velha Maria, chegam lá na mansão do velho Chico. Quem vem atendê-los é cadelinha Carniça, que desta vez, estava sem sarna e muito bonita. E, atrás vinha Chico Anú, palitando seus dentes.


- Quanto tempo, Moisés e Maria! Vieram me pagar?


O velho Moisés chora.


- Me perdoe Dr. Chico. Não lhe paguei porque não tinha dinheiro.


Desta vez, foi a vez de Chico humilhá-los.


- Querem café? Aceitam café? Tem café. Vão querer café?


E o velho Moisés responde.


- Não querido, Dr. Chico. Só queria saber como é que a tua vida deu essa guinada assim, tão de repente.


E Chico Anú explica.


- É simples. Eu caminhava 50 km daquela minha casinha onde eu dei pra vocês por misericórdia, até chegar aqui neste palácio que agora é meu, certo? Daqui caminhava mais 8 km pra chegar lá naquele terreninho abençoado que agora também é meu, certo? Fiz isso por três dias, indo e vindo e, vocês me fazendo de bobo. Passei muita fome. No primeiro dia de capinada, pensei que ia desistir, mas, não desisti. Valeu à pena, porque hoje, tudo isso é meu.


- Mas, como?!


E, finalmente, o velho Chico Anú resume:
- É que no segundo dia de capinagem, achei um tesouro. Dentro dele tinha ouro, diamante, prata, rubi e tudo quanto é pedra preciosa. Troquei tudo por dinheiro e passei a conhecer só gente poderosa. Falaram pra mim do sufoco da tua dívida com a justiça e eu comprei tudo. Hoje tenho prédios, fazendas pelo mundo todo. Mas, com toda a educação do mundo, quero presentear vocês, pois, afinal, hoje sou bilionário. Aceitam um presente?


Coitados! Acharam que o velho Chico ia devolver a mansão pra eles, já que era agora um bilionário. Virou as costas, baixou a calça e soltou um peido bem vitorioso e disse:

- Cheirem meu gás, seus animais!


Vixi, sô! E aí, danô! 



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