Lembro-me
dos meus cinco anos de idade. Minha mãe
Levou-me
num posto de saúde porque eu estava com muita gripe. Uma garotinha bem loura,
de olhos bem azuis, devia ter a minha idade (pensei) convidou-me para brincar
no pátio daquele posto de saúde. Fiquei tão feliz! Queria que aquela menininha
fosse minha amiga de verdade e para sempre. Estávamos brincando de
esconde-esconde e, que legal foi aquela brincadeira! A mãe daquela garotinha
(tão loura como ela) apareceu por ali, de repente, e disse zangada:
-
Tenha modos, Patrícia! Aqui não é jardim zoológico para você ficar
divertindo-se com macacos.
Eu,
uma criança negra, ingênua não entendi que aquela mulher estava referindo-se a
minha cor.
-
Tia, eu não sou um macaco.
Aquela
mulher puxou os braços de Patrícia com tamanha estupidez e disse-me:
-
Não sou sua tia, moleque retardado.
Fiquei
calado. Não sabia o significado da palavra “retardado”, afinal, eu só tinha
cinco anos. Voltei para a sala de espera, ao lado de mamãe que percebeu que eu
estava muito triste, mas, estava acreditando que era por causa da minha gripe.
Logo, o médico chamou por meu nome e, eu e mamãe entramos em seu consultório.
Nossa! Aquele homem claro estava com um mau-humor terrível. Mal olhou pra
gente. Disse qualquer coisa para a enfermeira e, logo ela já veio com uma
injeção nas mãos. O médico pediu que minha mãe se retirasse do consultório e
que me aguardasse na sala de espera. Foi quando aquela enfermeira esquisita
disse-me:
-
Macacos não choram quando tomam injeção, entendeu?
Mas,
eu chorei muito porque nunca fui um macaco e, não chorei pela picada da agulha
não. Eu queria entender “porque” chamavam-me de macaco e, por que a mãe de
Patrícia odiou-me.
Aos
sete anos, eu estava na primeira série e, adorava estudar. Eu era o único aluno
negro naquela sala de aula e, notava que ninguém gostava de mim. Quando minha
professora saía para ir à secretaria ou ao banheiro, os alunos faziam a maior
das bagunças. Não vou esquecer-me de Ritinha, uma menina ruiva maldosa que me
metia muito medo. Ela mexeu na bolsa da professora e roubou alguns pertences dela
e pôs a culpa em mim. Não sei até hoje como é que Ritinha fez isso, pois, foi
encontrada dentro da minha mochila escolar uma correntinha de ouro. Todos os
alunos temiam aquela menina malvada e, por causa disso, mentiram ao dizerem
para a professora que eu era o ladrão. Por causa disso fui expulso não só
daquela sala de aula, mas, também daquele colégio. Apanhei muito do meu
padrasto, um português muito bravo.
-
Seu macaco nojento! Está no teu sangue que és um ladrão. Isto está na tua cor.
Aquilo
doeu muito mais do que as cintadas que ele deu-me, confesso. Meu padrasto
chamou-me de ladrão e de macaco. Nunca roubei nada de ninguém.
Quando
completei nove anos, minha mãe conseguiu matricular-me num colégio. Lá, eu não
era o único negro e sentia-me mais seguro, pois, até minha professora era
negra. Só que minha alegria durou muito pouco. Minha mãe faleceu e, meu
padrasto tirou-me daquele colégio e levou-me para uma chácara. Naquela chácara,
foi onde conheci o que de fato era a humilhação de verdade. Meu padrasto e suas
duas filhas (todos brancos) tratavam-me como escravos e, por pouco eu apanhava.
Tinha que engraxar seus sapatos e botas, enfim, não era aquilo que eu queria
para mim. As filhas do meu padrasto estudavam na cidade e quem levava e
trazia-as era o meu padrasto. Eu queria tanto estudar.
Um
dia, (jamais ei de esquecer-me) eu e meu padrasto estávamos sós na casa da
chácara e, ele abusou de mim. Violentou-me sexualmente e brutalmente e fez-me
jurar que não contaria isso a ninguém ou então ele matar-me-ia. Dos nove aos
doze anos sofri seus abusos e fiquei calado. Fugi daquela chácara com a roupa
do corpo e, graças a Deus, pegando carona na estrada, cheguei a São Paulo.
Quando eu dizia para os caminhoneiros que era natural de Blumenau (Santa
Catarina), eles riam de mim: “Pensei que macacos só tinham em Pomerode, no
jardim zoológico”. “Teus pais são alemães, negrinho?”
Eu
queria trabalhar na cidade grande e, também estudar. Meu grande sonho era o de
ser médico. Ninguém me dava trabalho e, eu sabia que era por causa da minha
cor. Eu queria tanto ter um amigo. Precisava de um abrigo, de roupas, comida e,
algo que valia muito mais do que isso: amor. Sim, eu queria entender o “por
que” de ser mal visto por tanta gente. Demorou, mas, enfim, eu pude entender:
eu sou negro e serei até eu descer à sepultura. Depois, eu não sei mais nada.
Quem sabe, quando essa carcaça negra for comida e indigesta pelos bichos, eu
possa sentir-me livre e parar de provocar certos brancos, por causa da minha
cor, que têm nojo de mim.
Conheci
um casal de brancos e posso dizer convincentemente hoje que tenho pais
verdadeiros. Este casal de espíritas me adotou e deu-me boa educação e,
principalmente amor, que era o que mais me faltava. Graças a Deus e a eles,
estudei em bons colégios, conheci muitos lugares fantásticos e, assim, eu
cresci. Parecia que aquele “peso” do passado não existia mais para mim, pois,
eu relevei tudo e, não guardei ódio e rancor daqueles que me humilharam um dia.
Quando
eu tinha 17 anos algo surpreendente aconteceu em minha vida. Eu estava num
embalo de uma discoteca em Campinas, interior de São Paulo, quando me chamou a
atenção a garota mais linda daquele lugar. Meu Deus! Choramos muito mais do que
conversamos. Lembra-se daquela garotinha de olhos azuis da minha infância? Sim,
era Patrícia quem estava ali. Foi a minha namorada e mulher da minha vida.
Estava morando em Campinas e levou-me para a sua casa. Sua mãe odiou-me como
daquela vez; humilhou-me, mas, relevei tudo. Falei a ela do grande amor divino,
dos nossos irmãos espirituais do espaço, de todas as coisas lindas que aprendi
no espiritismo e ela dizia-me que tudo isso era do demônio. Disse a ela que
demônios não existem; que não valia a pena encher o coração de rancor, pois,
faz muito mal. Disse a ela que não sou um macaco e mesmo que eu fosse, faria
sua filha muito feliz. Aquela mulher racista congregava numa seita religiosa e
isso era tudo o que realmente importava a ela.
Dona
Clara (mãe da minha Patrícia) sofreu um grave acidente de carro e, para que
sobrevivesse precisava de uma transfusão de sangue. Ainda consciente disse no
leito do hospital:
-
Não quero transfusão de sangue. Minha religião não permite.
Dona
Clara perdeu seus sentidos e, ignoramos aquela sua doutrina religiosa. Doei meu
sangue a ela e, graças a Deus, ela sobreviveu. Casei-me com Patrícia contra a
vontade dela que foi desassociada daquela seita religiosa por causa daquela
transfusão. Dona Clara caiu numa depressão tão profunda por ter sido exclusa
daquela seita que acabou morrendo de tanto tomar remédios antidepressivos.
Consegui
me formar em médico pediatra. Sempre adorei crianças e, para a minha alegria,
Patrícia ficou grávida. Eu ficava paparicando ela e nosso filho dentro de sua
barriga o tempo todo; contando os dias e as horas para aquele moleque nascer.
Acompanhei passo a passo o seu pré-natal e, minha vida acabou, Doutor. Tudo
isso pra mim foi um sonho muito lindo que sonhei e teve um final trágico que eu
nunca vou conseguir entender: Minha Patrícia e meu filho morreram no parto.
Abandonei
minha carreira de médico e isolei-me de vez. Não tinha mais ânimo para nada,
nem mesmo para frequentar o centro espírita com meus pais. Como se não
bastasse, fui confundido com um estuprador bem no centro de Campinas e fui
linchado pela população e depois me prenderam. Até que foi provada minha
inocência apanhei muito dentro daquela prisão e, pior que isso: fui estuprado.
Eu pergunto: tudo isso por quê? Por que sou negro?
Eu
queria ser livre como os macacos. Qual é o preço da liberdade? Fiquei meses
naquela prisão, sai de lá, mas, continuo preso. Eu só queria ser feliz como
muita gente é, só isso, Doutor.
DOUTOR
BOA:
- Edson, sua história, apesar de ser marcada por
preconceitos e muitas humilhações é uma história comovente e muito linda,
porque você é lindo. Você tem um coração repleto de amor, apesar de sentir
muita mágoa; tem um coração puro, que não semeia rancor. O Autor da vida, do
amor, já sabia de antemão que aquela linda garotinha que você conheceu em sua
infância, seria a mulher de sua vida, a mãe de seu filho, por isso é que vocês
se reencontraram. Esta é a parte mais linda, entre outras de sua história.
Apesar do racismo, do preconceito de sua sogra você viveu momentos
inesquecíveis e felizes ao lado de Patrícia. Sua sogra era mais uma doente fanática
e eu diria até antirreligiosa que partiu deste plano sem entender que Deus é
amor. Por pior que seja uma seita religiosa, sua doutrina nunca vai pregar
contra o racismo e preconceito. Isso era obra da mente doentia dela. O seu
sangue foi quem salvou a vida dela e, por orgulho, ela ignorou a própria vida.
Teu filho jamais passaria pelas mesmas humilhações que você, meu caro! Deus o
recolheu e, creia: ele e sua amada Patrícia estão num plano superior a este e
te aguardam para junto deles.
- Você foi humilhado e abusado sexualmente por seu padrasto
que era um maníaco, um covarde. Gente como ele, e como aquelas da prisão, vai
pagar um preço muito alto ainda neste plano. Deus é justo e suas mãos pesam.
Ninguém vai embora daqui sem pagar as suas dívidas. Toda a humilhação que você
sofreu só provou pra si próprio que é notório e superior a estes invejosos.
Qual o problema de ser negro? O que a cor pode mudar no caráter de um ser
humano? Dentro de cada um de nós circula um sangue que é a vida e, este sangue
só tem uma única cor. Racistas são doentes. São como pragas no planeta; não são
felizes e jamais serão enquanto viverem nessa paranoia doentia.
É evidente que você guarda mágoas em seu coração,
porém, não permita que tal mágoa apague esta luz edificante que brilha dentro e
fora de você. Muitos brancos te humilharam? Ignore-os porque são doentes. Lembre-se
daqueles brancos que te aceitaram pelo que você é; como seus pais adotivos, que
te acolheram no momento em que você mais precisava e te deram boa educação e
melhor que tudo isso: muito amor; e o que dizer de Patrícia?
Você ainda é jovem e tem um futuro brilhante pela
frente. Você é um médico pediatra e pode salvar muitas crianças negras e
brancas. Orgulhe-se disso, Doutor! Um dia, creio que isso não vai demorar,
todos aqueles que respeitam a vida assim como eu, você, serão exaltados pelo
Criador que tudo enxerga, porque seus olhos estão por toda a parte e, então
viveremos todos felizes num paraíso de brancos e negros onde tudo o que
realmente vai importar é o respeito à vida que só tem uma cor. Ser livre é um
direito de todos. A liberdade não tem preço. Pense nisso.
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