Meu nome é José. Hoje estou velho. Não sei por quanto tempo
ainda vou viver, mas, quero relatar aqui que já estou morto há muito tempo. O
que presenciei em vida me fez calar e, sinto que vou me calar para sempre. Nem
mesmo o tempo que é o senhor de nossas vidas vai conseguir me fazer esquecer o
drama, a angústia, as horas de intensa aflição que passei.
Eu morava em Leme, uma pacata cidade do interior de São
Paulo. Era uma casa simples, humilde, assim como eu, minha mulher e minha única
filha. Meu vizinho era juiz de direitos e, não por isso, mas, era um homem
arrogante, sisudo, ignorante e estúpido. Uma pessoa que estudou tanto para se
tornar num homem frio, estranho. É lamentável. Ele morava ao lado de minha
casa, porém, numa mansão. Eu desejava apenas que Deus lhe desse um coração
diferente.
Regina, minha filha tinha apenas sete anos e, engraçado,
quando eu perguntava a ela o que queria ser quando crescesse, ela me respondia:
“Rainha”.
O muro alto do juiz, meu vizinho, separava nossas casas. Ele
tinha um animal feroz, um cachorro da raça pitbull no jardim de sua mansão.
Esse bicho latia, praticamente o tempo todo. Sei lá, não era um latido normal,
como é do instinto de outros cachorros. Seu latido parecia transmitir ódio,
raiva, como que, prazerosamente quisesse devorar alguém.
Minha filha brincava no quintal de minha casa, mas, brincava
com segurança, pois, só para lembrar, o muro do meu vizinho era alto e, cães
não são gatos. Um animal daquele tamanho jamais pularia aquele muro. Pois é, eu
também pensava como muitos. Movido pela raiva, que, sem dúvida, é o pior de
todos os sentimentos, aquele cão imenso pulou o muro. Ninguém nunca vai
conseguir entender isso, como também isso não importa agora. Eu chegava do meu
trabalho de carpinteiro nessa hora e vi aquela fera devorar minha filha e minha
mulher com seus dentes caninos.
Sem dúvida, a raiva supera o medo. Peguei um machado, que foi
a primeira coisa que vi na minha frente e enfrentei aquela fera monstruosa e
maldita. Eu venci. Matei aquele bicho no meu quintal e gritei por socorro pelas
vidas da minha mulher e filha que agonizavam. Eu tinha bons vizinhos e, logo,
um deles apareceu de carro e fomos às pressas para o pronto socorro. Minha
filha, minha única filha, aquela que queria ser rainha quando crescesse, morreu
no meu colo, agonizando, expelindo sangue pela boca e narinas. Não. Eu não
queria acreditar que tudo aquilo estava acontecendo comigo. Minha mulher
sobreviveu, porém, seus olhos foram arrancados pelos dentes daquele monstro e,
uma de suas pernas precisou ser amputada. Hoje vive numa cadeira de rodas.
Como se tudo isso não bastasse, roguei pela justiça divina
que, até então ainda não alcancei. Estou preso por ter matado aquele cão e, sei
lá, talvez, porque sou pobre, sem estudo e ele rico e juiz.
Meu instinto não é o instinto animal e assassino como o
daquela fera. Precisei matá-lo porque as vidas da minha mulher e filha estavam
correndo perigo. Creio que qualquer pai faria o mesmo que fiz.
Se você tem um animal feroz em sua casa, eduque-o, porém,
mais importante do que isso: eduque a si próprio primeiro. Se não reinar o amor
dentro de sua casa, o ambiente ficará carregado e, por incrível que possa
parecer, os animais são sensíveis e sentem o peso desse carrego.
Adeus, minha rainha. O amor é capaz de superar tudo ou quase
tudo. Menos a saudade.
doutorboacultural.blogspot.com/
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