quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

HORAS DE AFLIÇÃO (5) O PRÊMIO


Meu nome é Jeremias. No passado fui muito ambicioso, ganancioso. Eu queria ser rico, milionário, poderoso, achando que ter dinheiro era o melhor da vida. Nunca tive talento pra artes em geral, como também nunca gostei de estudar e, semianalfabeto, trabalhando como servente pedreiro, jamais conseguiria realizar o meu sonho que era o de ficar rico.
Eu pagava aluguel para morar num barraco de uma favela com minha mulher e meus cinco filhos num subúrbio de São Paulo. Às vezes, faltava comida em casa e, ver os olhos tristes dos meus filhos, bem crianças na época, me enchia de revolta. “Por que uns têm tanto e outros não tem nada?”. Nessas horas, eu tinha vontade de roubar, assaltar um banco ou um posto de gasolina, mas, eu era muito covarde para fazer isso.
Um dia, quando eu voltava do meu trabalho para o meu barraco, vinha em minha direção, Dona Emília, uma senhora bastante idosa que morava num dos barracos da favela que fazia parede e meia com o meu. Ela não percebeu, mas, deixou cair a sua carteira. Cumprimentei aquela senhora e, discretamente, peguei aquela carteira e, rapidamente, coloquei-a em meu bolso. Cheguei ao meu barraco, corri para o banheiro e, lá, fui conferir o que havia dentro daquela carteira. Fiquei admirado. Tinha quase dois mil reais em dinheiro, todos os documentos daquela senhora e uma receita médica. Coloquei fogo naqueles documentos, naquela receita médica e também na carteira. Aquela grana viera para mim no momento certo. Pensei.
Horas depois, eu e minha mulher e filhos escutamos o lamento, o choro e o desespero de Dona Emília.
- Eu perdi aquela carteira, meu Deus! Só dei conta disso quando cheguei à farmácia. Foram todos os meus documentos, todo o meu dinheiro da aposentadoria e, também aquela receita médica. Faça com quem a encontrou, que me devolva meu Deus.
Maria, a única filha de Dona Emília, era uma mulher especial. Além de sofrer ataques de epilepsia, tomava remédios controlados e, como se não se bastasse, tinha convulsões, sofria de asma e, não podia ficar sem medicação. Passou horas de agonia precisando ser medicada. Quando o Samu chegou à favela já era tarde. Maria morreu de insuficiência respiratória antes de chegar ao hospital. A pobre Dona Emília não tinha mais ninguém no mundo e, veio há falecer quinze dias depois.
Eu que não era nenhum pouco espiritualista, fui à igreja, dobrei meus joelhos, chorei, confessando a Deus o meu pecado, achando que Ele me perdoaria.
Depois disso fiquei com minha consciência muito pesada. Os pesadelos eram constantes. Que aflição! O que fiz foi terrível demais. Na verdade, eu não achei aquela carteira. Eu a roubei, porque a vi cair das mãos da velha Emília, uma excelente vizinha; Eu deveria ter lhe devolvido.
Um tempo depois, vinha em minha direção uma garotinha também moradora daquela favela. Eu ia pro trabalho e ela voltava a seu barraco segurando uma sacolinha nas mãos; Ela não percebeu, mas, perdeu oitenta e cinco reais em dinheiro e eu vi. Tudo bem. Era pouco dinheiro e, seu padrasto e sua mãe iriam entender. Pensei. Coloquei aquele dinheiro em meu bolso e segui o meu destino. Quando cheguei a meu barraco à tardinha, minha mulher me deu uma notícia desagradável.
- Lembra-se da Julinha, aquela garotinha bonita, enteada daquele monstro traficante? Pois é, o padrasto dela, além de estupra-la, a matou.
Senti como se meu coração fosse sair pela boca.
- Mas, por quê?!
- Parece que ela tinha cem reais nas mãos e voltava do mercadinho Aqui da vila. Perdeu o troco do que comprou e, antes de morrer, levou uma surra dos diabos do seu padrasto. Como aqui impera a lei do silêncio, ninguém fez nada. Provavelmente ele a enterrou em seu quintal, como quem enterra uma cadela. Coitada daquela criança! Sua mãe está em estado de choque.
Senti-me um monstro naquela hora. Se Deus me perdoasse, mesmo assim, eu recusaria o seu perdão. Se de fato existe o inferno, um lugar de tormento eterno, lá é o meu lugar. Até hoje tenho pesadelos horríveis e sofro de depressão. Na realidade, por minha causa, aquelas vidas se foram. Nunca vou me perdoar por isso. Aquela garotinha, a Julinha, brincava com meus filhos e sonhava em ser professora um dia. Teve uma morte horrível.
Era de meu costume fazer uma aposta na loteria. Eu jogava sempre os mesmos seis números. Fazia isso há anos. Um dia, quando eu voltava do trabalho passei numa casa lotérica para conferir o resultado do jogo e, embora eu não estivesse com o bilhete da aposta que ficou na minha carteira no meu barraco, não me importei. Eu sabia os números que jogava de cor. Fui o único ganhador. Voltei correndo para o meu barraco e, decepcionei-me de vez: a favela estava pegando fogo e tudo estava interditado. Minha mulher e meus cinco filhos morreram todos carbonizados, como muitas outras famílias.
Eu não podia acreditar que tudo aquilo estava acontecendo comigo. Mesmo sendo o monstro que eu era, eu amava a minha família. Eu é deveria ter morrido no lugar deles. É difícil acreditar, mas, naquela hora, vendo aquele fogo destruindo tudo, pude entender que o dinheiro não vale nada, pelo menos para mim. Tive nojo e ainda tenho de me olhar no espelho.


Por causa de dinheiro muita gente mata, destrói, não vive, vegeta. Enquanto eu ainda estiver vivo, jamais vou me perdoar pelo mal que causei por causa dele.


doutorboacultural.blogspot.com/

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