quinta-feira, 7 de junho de 2012

A culpa



Creio que nã há na terra um homem sequer que não tenha problemas relacionados com sua família. Outro dia, recebí em um dos meus consultórios um amigo completamente sobrecarregado de sentimentos destrutivos que precisavam ser expelidos de dentro dele porque isso agoniza e também mata.
- Bom dia, Vicente! Tudo bem?
- Não está nada bem comigo, doutor Boa.
- O que está acontecendo?
- Minha vida é um fracasso em todos os sentidos.
- Vicente significa “vencedor” e, me diz que sua vida é um fracasso?!
- Sou um perdedor isso sim. Na minha juventude ainda fui conhecer o álcool. Danou-se tudo. Me transformei num crápula relaxado e irresponsável por causa da bebida. Hoje estou aí sem lenço e sem documento como diz Caetano Veloso.
- Mas, conheço muitas pessoas que bebem e são responsáveis. Você culpa a bebida como a causadora do teu fracasso?
- Com ela na cabeça eu cometi muitas loucuras. Uma delas foi iludir uma garota e me casar com ela. Só coloquei filhos no mundo sem sequer preparo.
- Noto que a pessoa que se uniu à você estava também despreparada. Como um bezerro faminto querendo leite ela embarcou logo de cara na primeira teta.
- Ela acreditou em mim e, na sequência dos anos descobriu que foi mais uma vítima da ilusão.
- E você? Separou-se dela.
- Eu abandonei ela e meus quatro filhos.
- Quanto tempo durou esta união?
- Uns dez anos.
- Nesse período o que deu para sua companheira?
- Materialmente nada.
- A vida vale mais do que a matéria e, você deu quatro vidas à ela que são os seus filhos. Ainda me diz que é um fracassado?
- Mas, eu os abandonei, doutor.
- Por que?
- Porque sempre fui um sonhador. Eu queria ser um milionário pra ficar viajando pelo mundo, mas não passo de mais um boêmio. Sempre adorei compor e cantar e, longe dessas responsabilidades rotineiras de trabalho, registro em carteira, etc. Hoje meus filhos cresceram e o mais novo tem quase vinte anos.
- Fala com seus filhos?
- Só com dois.
- Que ótimo! Os outros dois tem mágoa de você por tê-los abandonado?
- Co certeza. Mas, eu culpo muita gente por eles estarem revoltados comigo. Não conhecem a minha versão porque até de mentiroso tenho fama.
- Não faças isso, querido. Ninguém pode culpar ninguém como ninguém é culpado de existir. Desde o princípio, a primeira família humana constituída por Adão e Eva já tinham esse sentimento irônico de culpa. Quando Giré (o criador) deu uma ordem para Adão e o mesmo não cumpriu preferindo comer do fruto proibido... o que é que o covarde fez? Culpou a sua mulher e ela culpou a serpente. Até hoje isso é assim. Dificilmente um homem vai assumir que é o verdadeiro culpado pelo fato de sua vida ter se desmoronado. Isto é: ele vai sempre culpar terceiros como quem não quer ir pro inferno sózinho.
- Mas, doutor... não fui eu só que errei. Sou acusado, por exemplo de manter um relacionamento com a minha cunhada (irmã da minha ex-mulher) mas, foi ela que me seduziu.
- Olha aí o fracasso de Adão. Não importa quem seduziu quem, meu amigo. Tanto você como sua cunhada foram dois sem-vergonhas mas, nem por isso outros vão fazer de suas vidas um inferno. A traição é a maior de todas as punhaladas que uma pessoa possa receber no percurso de sua vida, porém, a vida continua e ficar vivendo de passado é como vegetar no presente e assassinar qualquer idéia boa futurista porque ela não vai acontecer.
Ele baixa a cabeça e me diz com profunda tristeza.
- Eu estraguei tudo.
- Emendar um coração partido é praticamente impossível mas, existes outras conquistas. Liberte-se do sentimento de culpa e não culpe o amor de outros por te odiarem.
- Como podem me amar se me odeiam?
- Aí é exatamente o maior de todos os complexos: o amor. Você, para mim é um grande compositor e, numa de suas composições ou seja: para mim a melhor “o amor” você diz que, “quem ama espera o que há de vir para não se ferir com a solidão...” Então, meu caro! Quando você se uniu com sua mulher não fez uma loucura. Ou por acaso teus quatro filhos são loucos? Eles existem graças à você que os pôs no mundo. Se a mãe deles tivesse escolhido na época um outro parceiro, um homem equilibrado, responsável, de boa índole, enfim, seus filhos de hoje não existiriam. A ilusão também faz parte do amor, como o próprio ódio. Se pessoas da tua família, inclusive seus filhos guardam mágoas de você é porque verdadeiramente te amam mas, não admitem isso. Talvez, por orgulho próprio, sei lá.. Você e sua companheira na época se iludiram um para com outro talvez por medo de ficarem sós ou sentirem-se sós e, como prova de a ilusão também faz parte do amor o que nasceu desta união? Quatro vidas que são seus filhos, porém são reais e não ilusões.
- Entendo.
- “Se acha no caos da multidão mas, se perde no azul de toda a ilusão”. Concordo com você. Na época, tanto você como sua companheira estavam tão iludidos, ansiosos e despreparados que, nem sequer se preocuparam com as chicotadas do destino que viriam com o tempo. Se eencontraram por acaso sem mesmo se conhecerem melhor antes de se unirem. Como toda a ilusão é passageira mas, sem dúvida deixa suas marcas hoje vocês estão separados. Você é um fracasso? E ela? Foi sábia, tola ou mãe em se unir com você? Vocês dois produziram bons frutos dessa união. Honrem à eles que é o melhor quem poderão fazer. Eis que lanço uma inteligente pergunta mas, pense bem antes de me responder: Se fosse possível retornar ao passado, viveria todo ele outra vez, isto é, consciente hoje de que passaria por tudo isso?
- Para ter meus quatro filhos, sim. Só que hoje tenho juízo.
Aplaudi o meu amigo Vicente.
- Que maravilha! Eis aí o verdadeiro amor. Por isso é que as crianças não se casam. Porque faltam-lhes preparo, só por isso. No livro de Giré (a Bíblia) conta que houve um homem na terra que foi tão amigo de Deus que andou com o mesmo. Quem é este homem? Enoque. Quem era o seu pai? Caim, o primeiro assassino da história da raça humana. Matou o seu próprio irmão Abel.
- Conheço esta história.
- Então, meu caro... não importa que tipo de homem, de pai você tenha sido no passado. Se te culpam é porque são culpados, são doentes. Quando todos aqueles que te acusam, que te culpam tirarem de seus corações esta maldita mágoa com certeza vão ser felizes. E você tembém: liberte-se da culpa. Não culpe nem mesmo um cãozinho por fazer xixi nos teus pés.
Finalmente Vicente sorri.
- Não gosto de cães, doutor.
- Eu também não.
- É café que tem naquela garrafa, doutor?
- É um café que está tão velho quanto teu passado. Abstenha-se dele. Não cruze o sinal sem antes fazer o sinal da cruz, meu amigo. Te devo essa, hein!
Dei-lhe um forte abraço. Ele saiu do meu consultório aliviado e parecia mais otimista. Gostaria muito, mas muito mesmo de consultar seus filhos ou todos aqueles que os acusam. Para mim, sem dúvida, são mais doentes do que ele. Um dia, espero que não seja tarde demais e que se possível, ainda nessa vida se libertem desse maldito sentimento de culpa para viverem melhor aqui na terra, no paraíso celestial ou no inferno.

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