Numa bela manhã de inverno logo nas primeiras horas do dia chega um sujeito em um dos meus consultórios que conseguiu mexer com os meus sentimentos. A princípio fiquei irritado com sua chatice, depois, durante nosso diálogo pude observar que eu estava diante de um homem problemático, mas convincente de que realmente queria mudar o seu modo de vida. Ele estava embriagado e, confesso que tenho aversão a álcool, porém, sendo eu o doutor me senti na obrigação de ajudá-lo.
- Qual é o teu nome?
- O que vai me ajudar se eu lhe disser que sou Pedro Paulo?
- A princípio posso lhe afirmar que nossa conversação ficará mais educada, direta e inteligente.
- Todo esse sermão, pra que?
- Meu amigo, isso não é um sermão. Só lhe perguntei qual é o seu nome.
- Eu já lhe disse meu nome. O senhor é surdo? Meu nome é Pedro Paulo.
Respirei fundo tendo a leve impressão de que iria me aborrecer com aquele sujeito.
- Qual é o teu problema, Pedro Paulo?
- O senhor só sabe perguntar?
Alterei a voz:
- Meu amigo, se não responder minhas perguntas será praticamente impossível eu lhe ajudar.
- Muito bem. Não precisa ser grosso. Meu problema é a maldita bebida.
- Se me diz que a bebida é maldita, então por que bebe da maldição?
- Porque sou dependente dela, doutor.
- Obrigado por admitir isso, Pedro Paulo. Já é um ótimo começo. Ser um dependente químico é ser mais um doente no mundo, porém, tal doença tem cura. Quer se livrar do álcool?
Ele baixa a cabeça e chora convulsivamente.
- É o que mais quero doutor. Por causa dela perdi minha esposa e também meus quatro filhos. Nada de bom fiz por eles. Eu queria mais era ficar nos barzinhos jogando conversa fora com meus amigos. Eu chegava a casa tropeçando em tudo, dando pontapés na cadela, violento e com sede de briga. Agredia moralmente e também, fisicamente a mãe dos meus filhos que sempre foi caprichosa no lar e eu não enxergava isso.
- Tudo isso por causa da bebida. Mas, você não era obrigado a beber. Se desviasse do bar, dos amigos que nunca foram seus amigos e fosse pra casa curtir a sua família (que é o melhor da vida) toda a sua história hoje seria diferente.
- Eu achava que minha felicidade estava lá no bar, doutor. Lá eu cantava com meus amigos, ria e também chorava muito.
- Tudo isso é ilusão, Pedro Paulo. A bebida transforma um homem num bicho; num verdadeiro fracassado. Embriagado o homem fala mole, fica com um semblante horrível, da risada sem graça; chora pela morte da cadela e, o pior: está comprando o seu ingresso para a morte.
- Meu Deus! É verdade.
- O sujeito que depende do álcool para ficar desinibido é o maior dos complexados. Tudo o que pensa, fala ou escreve é mentira e, mesmo que seja verdade. Não tem crédito; é mal visto e mal quisto pela sociedade e vive sempre solitário porque todas as suas amizades são artificiais, isto é: quando movidas pelo álcool.
- Concordo com o senhor, doutor.
- Movido pelo álcool ele não percebe, mas, se transforma numa criatura monstruosa, inconveniente, desagradável, desprezível e especificadamente fedorenta. Não perde a moral porque não tem moral. É um sujeito sem palavra, mentiroso, caloteiro e quase todos os adjetivos maléficos que possa existir. Os males que o álcool provoca são diversos, mas, creio que o pior deles é o mau-humor. O sujeito ressacado não tem interesse por nada. Fica tão relaxado como um ocioso; tudo o que falara no dia anterior (movido pelo álcool) foi tão artificial como é a sua vida dia após dia. Um dia vai ter que prestar contas com o seu Criador e, creio que nesse dia será muito tarde para reparar erros; para arrependimento. Na realidade, enquanto ele vivia na terra comprava o seu ingresso para a morte consciente, portanto foi um suicida.
- Meu Deus, doutor!
- Que maravilha é acordarmos disposto, ouvindo o cantar dos pássaros, com aquela vontade imensa de viver mais um dia! Sem aquela maldita ressaca, indisposição total e principalmente aquela depressão que bebemos no dia anterior.
- Mas, por que não consigo me libertar da bebida, doutor?
- Porque você não quer. È muito simples se abster daquilo que nos danifica, destrói. Observe os bezerrinhos, por exemplo: eles tomam leite e, com o tempo comem capim. Os bebês humanos crescem tomando leite e ao invés de capim comem salada, pelo menos comigo foi assim. Imagine um bebê bêbado. Não seria o apocalipse?
- Seria mesmo.
- Na realidade, o homem na regra geral tem tantos problemas porque quer. Beber não é nunca foi e nunca será a solução para qualquer tipo de problemas. É o maior de todos os problemas. Você fica irresponsável, mente, não diz coisa com coisa, faz escândalos, fica valente, mas, na realidade não passa de um covarde porque tal violência é movida pelo álcool, por uma droga que só vai trazer desgraça em sua vida. A primeira dose pode ser a última; o primeiro copo pode ser o último.
- To começando a ter horror à bebida alcoólica, doutor. A propósito, o senhor nunca bebeu?
- Bebo água, leite e sucos naturais. Isso não é bom?
- Mas, doutor, não consigo me imaginar sentado numa roda de amigos tomando água, leite ou sucos naturais.
- Pedro Paulo, o verdadeiro diálogo tem que ser são e não doente. Você pode não acreditar, mas, quando estamos sãos o próprio universo sorri pra gente e, conseqüentemente tudo na vida tende a dar certo. Esteja certo de que teremos na trajetória de nossa vida tão passageira, bons pensamentos, bons sonhos, boa saúde, bons e verdadeiros amigos e, principalmente uma verdadeira família.
Novamente Pedro Paulo baixa a cabeça.
- Mas, agora é tarde, doutor. Perdi minha família.
- Tua mulher e filhos morreram?
- Não. Minha ex-mulher encontrou um homem de verdade e se juntou com ele. Meus filhos se revoltaram comigo porque os abandonei no passado.
- Com o tempo eles vão aprender que quem de fato abandonou quem foi você a você mesmo. Todos os seus filhos estão revoltados contigo?
-Pelo menos dois deles nem querem me ver.
- Disse que tem quatro filhos.
- Do meu primeiro casamento sim, mas, tenho outros.
- Não importa a quantidade de filhos que você tenha Pedro Paulo. Se eles estão aqui é porque Giré permitiu. Se pelo menos conseguir reconquistar o amor de um deles, tenha certeza de que, o amor dos outros virá com o tempo. Não se esqueça: quando estamos sãos o universo sorri pra gente.
- Decididamente não quero mais beber, doutor. Se ainda der tempo vou tentar reconquistar o amor dos meus filhos que são como pérolas preciosas pra mim. Sei que vai ser difícil, mas vou tentar.
- Difícil?! Difícil é Gire pecar e Girún (o Diabo) se converter, amigo. Vai ser tão fácil quanto parar de beber. A propósito, ainda vai querer beber da maldição?
- Não doutor. Fiquei pensando nesse tal ingresso pra morte que o senhor me falou e basta. Eu quero viver. Muitos de meus amigos se foram por causa do álcool. Alguns com cirrose, hepatite, outros por infarto, diabetes e até suicídio.
- Então, meu caro não queira ser mais um na lista deles. Um dia, todos nós que aqui estamos também teremos que partir, mas, que nesse dia estejamos sãos e sóbrios como aqueles bezerrinhos e bebezinhos porque o universo, sem dúvida tem preparado um excelente lugar para a gente.
Pedro Paulo fixa seus olhos na minha garrafa térmica.
- É café que tem ali naquela garrafa, doutor?
- É uísque, querido. Alguns dos meus pacientes tomam e, quer uma dose?
- De uísque?! Não, nem pensar. Desse mal posso lhe garantir que estou liberto e, graças ao senhor.
- De graças a Giré meu querido e vá à paz dele. Não caia na tentação como nossos pais lá do passado: Adão e Eva. Sem dúvida fizeram da fruta proibida um licorzinho e olha só no que deu.
- Muito obrigado mesmo, doutor.
- Não tem de que me agradecer, amado. Que Giré dos giros te acompanhe e, daqui pra frente gaste o seu dinheiro comprando o ingresso para a vida: tome leite como o bezerro. Se tu e teus filhos tendeis celulares encha o teu de créditos e, mande torpedos pra eles. Creio que até Girún (o Diabo) gosta de receber mensagens. Com teus filhos não vai ser diferente.
Dei um aperto de mão e um abraço bem forte em Pedro Paulo que saiu satisfeito do meu consultório. Não de mentir, mas, jamais iria oferecer meu café (bala intestinal) a ele que foi tão agradável, pois meu café é destinado às pessoas desagradáveis.
Alguns meses depois... Eu atravessava uma avenida bem movimentada da capital paulista e quem eu vejo num boteco? Ele mesmo: Pedro Paulo. Conhecem aqueles copinhos sem-vergonhas que alguns chamam de martelinhos? Pois é, ele tomava um martelinho branco e, quando me viu ficou tão surpreso que, quase aquele copinho caiu...
- Pedro Paulo! Tomando uma batidinha de côco?!
A garçonete é quem respondeu por ele.
- Não, doutor! Ele ta tomando leite e já é o quarto.
Fiquei tão emocionado que resolvi tomar um também, mas, no meu copo que tirei da minha bolsa. Não confio nessas lavações de botecos, sabem?